domingo, 27 de janeiro de 2013

Texto: Morte do Leiteiro, Drummond


Queria hoje não só homenagear um dos maiores (senão o maior) escritor brasileiro, de quem sou fã incondicional, mas também partilhar aqui uma de suas obras. Conhecida que é, não me surpreenderia se alguns leitores já a tivessem lido. Mesmo que seja o seu caso, leia outra vez, que Carlos Drummond de Andrade nunca é demais.



Morte do Leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

É por causa desse poema que ponho o meu leite em garrafas de vidro. A forma como se evidencia a continuidade da vida diante das violências, mortes de tantos "leiteiros", que me encanta. E é isso mesmo, independente do dia de hoje, tenha ele sido bom, tenha sido ruim, a vida continua.

Espero que tenham gostado.

Até mais,
Gih

2 comentários:

  1. Carlos é uma coisa na minha vida. Uma pedra no meio do caminho. O homem tem coisas lindas como "As sem-razões do amor" e depois ele vem com pedras... Ok, eu entendo a beleza das pedras, mas tem alguns poemas dele que eu dispenso! O ponto é que a produção dele é extensa e muito, muito variada, inclusive a qualidade varia muito de acordo com as fases do poeta.
    Por isso eu amo e também odeio!
    Mas, uma coisa é certa: não tem como não querer ser gauche na vida depois que você encontra
    Carlos! ;)

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    1. Oi!
      Ok, confesso que de Drummond prefiro as crônicas... Mas acho essa variedade algo bom. Tem todo tipo de Carlos Drummond para todo tipo de gente!
      Beijos,
      Gih

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